Olhar de viajante:
A nova fase de Emanuelle Calgaro
Eduardo Mahon
Quando chegou à colônia, fugindo da invasão napoleônica, D. João VI não tinha ideia do que era o Brasil. Deixou seu filho, D. Pedro I que não teve tempo de conhecer o país que tornou independente. D. Pedro II tinha uma grande tarefa: integrar o território continental que compunha o então desconhecido império. Litoral e sertão: era essa a tônica da imprensa carioca, interessada em publicar notícias de expedições fomentadas pelo Império. A “civilização de caranguejos” não imaginava o que havia no interior.
Dois séculos mais tarde, em Cuiabá, aconteceu a vernissage de Emanuelle Calgaro. A exposição encontra-se instalada no salão de arte da Secretaria Estadual de Cultura. É claro que me lembrei de Augustin de Candolle, Sydney Parkinson, Auguste de Saint-Hilaire. As expedições científicas, em geral patrocinadas pelo governo, retratavam fauna e flora, uma riqueza de biodiversidade não compreendida até os nossos dias.
Em Mato Grosso, é difícil não citar Langsdorff, cientista que rodou nossos sertões na primeira quadra do século XIX ou mesmo o “Doutor Meyer”, personagem de Inocência, do Visconde deTaunay. O olhar de viajante, aliás, se constituiu uma tradição necessária em meio à geografia tão diversa. Em nossa literatura, por exemplo, o descritivismo continua sendo uma constante, muito provavelmente em razão da demanda do público em fazer do texto um objeto de contínua descoberta nacional.
A ornitologia, motivo central de Calgaro, é uma janela naturalista aberta no presente. Diz ao futuro: veja o que temos, veja o que somos. De certa forma, conscientiza os observadores de que, em breve, serão também observados. Afinal, somos o passado que ainda perdura. Vejamos as gravuras de Debret, por exemplo. Elas nos ajudam a entender a sociedade passada e, como não poderia deixar de ser, as heranças ambivalentes que carregamos no presente.
Emanuelle Calgaro registra espécimes como se desfolhasse um caderno antigo das expedições naturalistas. Trata-se do passado? Felizmente, é o que ainda temos no Brasil. Seria muito valioso que o governo de Mato Grosso fizesse o caminho inverso: editar um catálogo com base na obra de Calgaro. Quanto mais registros, mais pesquisas. Essa mirada é matéria-prima para vários estudiosos de diferentes campos do conhecimento, a começar pela própria arte.
Eduardo Mahon é membro da Academia Mato-grossense de Letras e do Instituto Histórico e Geográfico de Mato Grosso.